sexta-feira, 29 de maio de 2020

Brasília

Embora nascido no Rio, morei em Brasília, em 3 ocasiões da minha vida. Na primeira, não vou contar, até pq não me lembro, pois foi no período de 1970 a 1974, dos meus meros 2 meses de idade até os 4 anos. Além de não me lembrar de absolutamente nada, por se tratar da 1ª infância, tudo são flores, e minhas impressões desta época parecerão altamente suspeitas.
A segunda, de 1978 até 1988, posso dizer que foram os anos dourados da minha vida, pois saí de um apt de 3 quartos, em copacabana, posto 2 (aonde ficam as principais boites...) aonde ficávamos amontoados em 2 beliches, (já que somos 5 irmãos), para um amplo apto de 4 quartos, aonde em cada quarto ficavam 2 de nós. Passamos a ter o status de ter carro, pois agora tínhamos garagem p/ guardá-lo, já que naquela época no Rio já havia roubo de veículos e trânsito caótico, óbvio que não era nem um décimo do que é hoje, mas já era o suficiente. De fato, tinha-se a segurança de poder passar as tardes (óbvio que só depois de fazer o dever de casa) brincando nas quadras, e tive a sorte de morar em boas quadras da asa sul. 104, 202, novamente 104, 113, 111 até ir para o lago sul, na longínqua QI 27, onde ninguém queria morar, e havia em 1982 (qdo nos mudamos para lá) a promessa de em 5 anos no máximo, construirem a 3ª ponte do lago sul (fato que se atrasou por apenas mais de 20 anos).
Morando no Lago Sul, pude ter o privilégio de poder brincar de todas a brincadeiras que uma criança saudável pode. Soltei muita pipa, joguei muito peão e iô-iô da coca-cola (o da fanta era coisa de viado)Playmobill, Falcon, Piq esconde, piq tá, Bete, batinha frita 1,2,3, estátua, bafo (meninos não brincavam de elástico), além do tradicional ping-pong, futebol , da queimada e do Voleybol, que se iniciava naquela época. Joguei muito banco imobiliario, imagem & ação, detetive e war. Explorei com minha bicicleta berlineta caloi azul, trocada depois por uma barra forte vermelha (aquela que tinha "banco reserva" na frente do selim) de 3 marchas (kkkkkkkkkkkkkk), todas as estradas de TERRA da região, e ia com as minhas cachorras, andar pelo mato até o lago ou passear pelos rios que circundavam a região, coisas que infelizmente não existem mais. Final de semana, principalmente depois que passei para a fase da adolescência, o programa era patinar com patins de 4 rodas paralelas e coloridas no Gilberto, numa pista circular em cima do Jumbo, hoje Pão de Açúcar. Isso de de dia, pq à noite (até as 20, 21h), o point era a ZOOM, danceteria da moda. Depois que a matinê terminava, era legal ficar rodando o Gilberto, pra esbarrar com metade de Brasilia e comentar no dia seguinte em sala de aula, que fulano ou fulana estava com beltrano ou vestido com alguma roupa cafona, esquecendo que TODAS as roupas eram cafonas na época.
Passei então para a época de querer arrumar uma garota pra namorar a sério(isso aos 15 anos de idade), e uma garota não tão séria para contar pros amigos aonde vc passou a mão nela (transar, só mais tarde kkkkk). Óbvio que nunca conseguia nem uma e muito menos outra. O lance era Fumar escondido (cigarro comum), "roubar" o carro do pai pra ir até o fim da rua e voltar so pra se exibir, juntar a galera pra ir dar porrada nos meninos do conjunto de cima que mexeram com as nossas garotas ou havia dado porrada nos meninos menores da nossa rua, meninos esses que, dizíamos, só a gente pode dar porrada, mais ninguém. Nessa época, vivi uma época de efervescência musical, a era do BRock, que hoje virou PLOC. Todo mundo tinha banda, e não éramos exceção. Meu vizinho tinha uma guitarra, o outro bateria, um terceiro era baixista. Ficávamos horas na churrasqueira de uma das nossas casas "ensaiando" alguma coisa sem letra e muito mais horas tocando músicas dos nossos ídolos na porta das nossas casas. Tive o prazer de assistir DE GRAÇA no Gilberto, Paralamas, PleBe Rude, Legião, Capital (Capital e Legião se chamavam "Aborto Elétrico"). Meus vizinhos tiveram o desprazer de ouvi-los, através das nossas vozes, mas que com certeza eram bem melhores do que os funkeiros que gravam CDs e "proibidões" de hj em dia. Não havia internet nem celular e nem por isso não achávamos que estávamos isolados do mundo.Tínhamos que lotar os bolsos com fichas de orelhão, para pedir p/ nossas mães vir nos buscar aonde estivéssemos. Nosso grito de lkiberdade era ter as chaves de casa, que eram penduradas no pescoço, por um chaveiro em formato de espiral, imitando um fio de telefone e podia ser de diversas cores. Óbvio que o meu era azul (DE MENINO!!!). Os carros mais luxuosos dos nossos pais eram Santana, Monza e Del Rey. Era comum ter um carro a álcool, e achar normal ter que esquentar o carro antes de sair pela manhã. Minha mãe tirava onda num Passat,que depois passou a ser o meu primeiro carro. Festas?? Preparem o Gel com purpurina, para fazer o topete a la Leo Jaime!!! os casacos obrigatoriamente tinham que ter ombreiras enormes, os camisões até o joelho e as calças "santro-peito" de boca estreita reinavam. Sapato? que nada!! o chique era Dock Side da Samello. Os LPS eram censurados e riscados com prego, para que não ouvíssemos as músicas proibidas pela censura. Carnaval? Disputadíssimos os convites da AABB, do IATE e da ASBAC. Qdo não se conseguia nada, ia-se mesmo pra matinê do Clube do Exército e em última instância, do Clube Naval. Éramos heróis de 14 anos que pulávamos o muro da escola pra ir pro comício das Diretas, óbvio sem que nossas mães soubessem, pois do contrário ficaríamos de castigo sem ver a "Sessão Aventura" até o fim do ano. A Tv era "educativa". dos desenhos antigos, como pica-pau e pernalonga até os mais novos como He-Man e Thundercats, tudo era diversão. Mas legal mesmo era ver os bonecos do Ultraman derrubar os prédios de papel. claro que com 14, 15 anos, ninguém podia saber que a gente ainda via desenho animado, pois isso era coisa de criança. Ser adulto era ir na cantina da escola e comprar 1 cigarro hollywood e guardar pra ir fumar no corredor na hora do intervalo. Não dava pra comprar o masso, pois além do dinheiro do lanche não dar, se nossas mães descobrissem, era surra e castigo na certa.
Tudo foi maravilhoso, mas durou até a época do famigerado vestibular, qdo minha vida pessoal tb virou de cabeça pra baixo e a realidade adentrou até a ilha da fantasia, "forçando-me " a voltar para o mundo real em 1988. Nunca esqueci estes tempos, e sempre dizia que voltaria um dia a ter aquele estilo de vida que tanto gostava. Em 1998, dez anos depois, tive a oportunidade então de retornar à cidade pela 3ª vez. Nada era mais a mesma coisa, até pq eu não era mais o adolescente metido a roqueiro com topete e uma bicicleta vermelha. A cidade já apresentava sinais de crescimento desordenado, principalmente ao seu redor. Novas cidades-satélites surgiam e novas invasões eram regularizadas. Nesta época, vi se iniciar o Recanto das Emas, Aguas Claras, e Samambaia já era grande, violenta e solidificada. O Paranoá, antes favela, agora era cidade, e com uma infra estrutura um pouco melhor. A única coisa que não havia mudado era a favela da estrutural, aonde havia sempre conflitos para se tentar uma retirada. Foram 3 anos, ralando de sol a sol, tentando vender curso de inglês, morando de favor na casa de irmãos que por aqui ficaram e incomodando minhas cunhadas. Até que resolvi em 2001 aceitar um convite de trabalho para ir pra São Luis do Maranhão e por um fim na idéia de um dia voltar a morar na cidade que eu cresci, pois ela já não existia mais.
Hoje, em setembro deste ano, qdo estive por aquelas bandas revendo meus amigos de infância, já com outra cabeça (não tão sonhadora e bem mais realista), pude notar que o inchaço é ainda maior e que desigualdade cresceu ainda mais. Mas não é só isso. Infelizmente pude ver o qto as pessoas enriqueceram às custas do sacrifício do resto do país. Fui no Pontão, um pouco antes do encontro com o pessoal na pizzaria e vi uma Rave do outro lado da margem (na área dos clubes), ser abastecida de gente através de lanchas e iates caros lotados de pessoas, quase sempre com uma lata de cerveja na mão. O pequeno cais do local ficou engarrafado para tanto embarque e desembarque. E as conversas referentes aos barcos, era como se estivessem falando de um segundo carro, ou de um mimo ganho de presente do pai, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Carros importados em grande quantidade, SUVS e pick ups do ano, como a do meu irmão, realmente faz com que vc pense que está em hollywood ou na Barra da Tijuca.
Exatamente, não pensem que o privilégio de se isolar da realidade do país é só de Brasília. A Barra é idêntica ao Plano Piloto, com a diferença de ter o gabarito bem mais alto que o de 6 andares. A Barra ainda tem a vantagem de ter a praia, ventar bastante e de manter as favelas pro outro lado da linha amarela e ou do túnel. Tudo isso pra chegar à seguinte conclusão: Quem mudou mais? A cidade? Nós? O mundo? Tudo isso junto, só que numa velocidade que está difícil de acompanhar. Hoje em dia, os valores mudaram, os conceitos mudaram, as músicas viraram funk. O mundo mudou e as cidades em que vivemos só acompanharam estas mudanças. Certamente a cidade vai continuar lá qdo nós formos embora, mas as pessoas que lá habitam vão mudar e com isso mudar toda uma cidade, transformando o que foi nosso lar ontem em lugar completamente estranho hoje.
Foi essa sensação que tive qdo estive em Brasília da última vez. A de que um dia tudo isso me pertenceu, foi o meu mundo, mas hoje é completamente estranho pra mim. Dizer que jamais voltarei a morar na cidade seria bobagem, mas certamente teria dificuldades em me adaptar a ela, mais do que das outras vezes. Não pela cidade, ou pelo ritmo que ela impõe debaixo de 4 rodas o tempo todo, mas mais por causa das pessoas, do provincianismo dos habitantes que eu hoje, mais velho, mais ranzinza e mais carioca, não sei se aturaria. Vejo muito disso aqui em Teresópolis, pois trata-se de uma cidade interiorana, e combato veemente este tipo de atitude . Hoje Brasília é uma metrópole do poder e não deveria mais admitir isso. A cidade cresceu, as pessoas devem crescer tb e ao invés de querer ter uma identidade paulista, mineira, gaúcha, carioca, devem aprender a ter identidade brasiliense. Talvez esta nova geração que nasceu se criou e hoje procria por aí esteja aprendendo a enxergar esta nova identidade, cosmopolita, que recebe brasileiros sonhadores que chegam na cidade exatamente como os brasileiros de mais quarenta anos atrás, em busca de um sonho, de algo melhor que foi deixado pra trás, no seu lar, que hoje não existe mais.
No meu caso aconteceu o inverso, o meu lar foi Brasilia, e fui eu que saí de lá em busca dos meus sonhos. E hoje apesar da cidade continuar a existir, o meu lar já é outro, feliz, mas completamente diferente da alegria que sentia ao sentir o cheiro da chuva batendo na terra vermelha, de ver esta mesma chuva se aproximando no horizonte e depois vê-la indo embora na mesma nuvem que a trouxe junto com um arco-íris, pensando se lá do outro lado tinha mesmo um pote de ouro, do vento batendo no meu rosto qdo descia a ladeira no carrinho de rolimã, do sorriso que abria ao ver minha tampinha (de ferro, não de plástico) de garrafa ganhar a corrida num circuito que eu e meus amigos montávamos no parquinho de areia da quadra, tão diferente dos plays grounds de cimento dos condomínios de hoje.
Quem mudou fomos nós, foi o mundo que hoje passa por uma fase de transição, pertinente a toda mudança de século, cercada de diversas revoluções. Há de se lamentar o que foi deixado pra trás, mas também há de se querer que o futuro que nossos filhos terão, será (se deixarem) muito melhor do que o nosso, pois todos os problemas que temos hoje terão passado, e caberão a eles enfrentar os novos problemas que surgirão, com o legado que deixarmos para eles. Por isso, pra terminar este testamento e antes que vcs digam que estou enchendo o saco de vcs, digo que sinto saudades da Brasilia que vivi, mas que gostei muito da Brasilia que vi, apesar de tudo. Não há como não ouvir as cigarras cantando e não se emocionar, não sentir saudades.
Aos sortudos que puderam ver o lado bom e ruim das mudanças que ocorreram desejo boa sorte e felicidades. Tomara que seus filhos façam da cidade um lugar melhor e possam resgatar o que tivemos na idade deles, mas da maneira deles, para que eles possam um dia relatar os bons dias que viveram. E tomara que um dia eu possa levar os meus filhos aí, pra mostrar a cidade que um dia foi o meu lar e que estará em minha lembrança para o resto dos meus dias.
Um grande abraço a todos, desculpem se ofendi alguém e desculpem o ENORME, nostálgico e chato relato.

Postagem de 17/11/2006

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